sábado, 24 de setembro de 2016

O Livre-Arbítrio

"Há no homem alguma genuína liberdade de escolha? Somos meros bonecos no teatro de fantoches divino? O homem escolhe livremente entre o Bem e o Mal? Um mero sim ou não, seria insuficiente para responder essas perguntas. Há tantos detalhes, correlações, etc., impossível tratar tudo neste curto esboço que tem por alvo, apontar a compatibilidade (ou não) do livre-arbítrio com os ensinos bíblicos.

Livre-arbítrio é um conceito metafísico muito conhecido. Filmes, livros, desenhos aminados, fábulas infantis ou mesmo palestras motivacionais, abordam a vida na perspectiva: “você faz seu destino”, “suas escolhas definirão o seu futuro”, “tudo depende de você”, e assim, no senso comum, nenhuma certeza é mais vigorosa do que esta: “tenho liberdade de escolha, é a partir delas que se constrói o meu futuro”.

Essa ideia ampla tem desdobramento nas mais diversas áreas. Geralmente aparece relacionado a moralidade para justificar a responsabilidade humana. Na ciência, indo de discussões sobre indeterminismo e partículas quânticas (seja lá o que isso for) até análises da psique humana, na busca pela compreensão comportamental e nos estudos sociais. Considerando antropologicamente, livre-arbítrio nada mais é que a capacidade natural de escolher diversas opção moralmente iguais; a simples tomada de decisão; agir conforme à vontade ou razão[1].

O fato é, homens não são máquinas, que seguem simples comandos, e nem meros animais que agem por instinto; são mais (normalmente) que débeis, bestas, bruto ou maníacos. Tomam decisões seguindo a própria vontade, muitas vezes contrariando o bom-senso, instintos de preservação ou emoções e sentimentos fortíssimos como medo, honra ou paixão. E por mais que a sociologia ou a psicologia tente padronizar o comportamento humano e reduzi-lo a ‘equações’ estáticas, na vida comum, no dia a dia – para além de teste simplistas em situações artificias, controladas e obtusas – tudo tende a um personalismo praticamente indeterminado (segundo nossa perspectiva finita e temporal).

Mas como fica quando transita para a teologia? Esse assunto é um verdadeiro “nó górdio[2]”. A bem da verdade o termo “livre-arbítrio” não aparece nas páginas da Bíblia Sagrada. Mas essa capacidade de agir por si mesmo, seguir a própria vontade, ao contrário do que se afirma costumeiramente, não é questionada pela Teologia Cristã genuinamente bíblica. O calvinismo ou a cosmovisão cristã reformada, apenas redimensiona – realisticamente – a força ou efetividade desse conceito. Inclusive parte da academia reformada mais recentemente têm usado[3] livre-agência, para tratar dessa capacidade de livre escolha. Falando simplistamente essa é uma solução semântica, ou seja, não é uma proposta fundamentalmente nova ou diferente para tratar a autodeterminação natural dos entes morais.

Definido então livre-arbítrio (livre-agência) – em termos gerais – como a capacidade agir de acordo com a própria natureza[4], as dificuldades facilmente se desfazem, sem apelar ao paradoxo ou ao mistério, sem negar a responsabilidade humana ou livre-agência e obviamente sem fraudar a soberania divina exaustiva. Ao observar o capítulo IX da CFW[5] percebe-se que essa solução funciona:

1) Criação:

Deus dotou a vontade do homem de tal liberdade, que ele nem é forçado para o bem ou para o mal, nem a isso é determinado por qualquer necessidade absoluta da sua natureza. O homem, em seu estado de inocência, tinha a liberdade e o poder de querer e fazer aquilo que é bom e agradável a Deus, mas mudavelmente, de sorte que pudesse decair dessa liberdade e poder[6].
Adão foi criado ser moral. Capaz de fazer escolhas livres e conscientes, mais que isso, foi dotado de uma natureza sem inclinações que suplantassem sua vontade, quer para o certo quer para o errado. Diferentemente dos demônios que só fazem o mal, e dos anjos que obedecem a Deus, naturalmente o homem podia, sem impedimentos ou compulsões, agir bem ou mal, na prática, obedecer a Deus ou pecar.

Não obstante alguém poderia argumentar: Deus criou tudo bom e assim o homem ao pecar agiu contra a sua natureza (boa), mas ali em Gênesis o sentido de “viu Deus que tudo era bom” é de exatidão – aquilo que é exatamente o que deve ser – doutra feita, sendo a natureza humana comunicada da natureza divina, nada mais óbvio que no homem haver um grau de liberdade e autodeterminação. Assim, ao optar livremente por desobedecer, aceitando a indicação da Serpente, não houve, na decisão (não dar ouvido a ordem de Deus) que levou a Queda, ação contra a natureza!

2) Queda:
O homem, caindo em um estado de pecado, perdeu totalmente todo o poder de vontade quanto a qualquer bem espiritual que acompanhe a salvação, de sorte que um homem natural, inteiramente adverso a esse bem e morto no pecado, é incapaz de, pelo seu próprio poder, converter-se ou mesmo preparar-se para isso[7].
Ao cair de sua inocência inicial, morrer espiritualmente – fruto do Pecado – o ser humano perdeu essa capacidade de livre escolha para o Bem (espiritual). Seu coração, vontade, natureza mudou, agora é naturalmente inclinado para o Mal. A desobediência tornou-se o padrão da conduta. Sua indisposição a Deus o impede de agir corretamente. Tudo quanto faz é essencialmente mau. Logo por sua natureza (espiritualmente) morta, o homem não pode receber, aceitar ou obedecer a Deus. E se não houver uma mudança profunda, uma transformação, uma alteração radical no homem, ele nada pode fazer para o Bem.

3) Redenção:
Quando Deus converte um pecador e o transfere para o estado de graça, ele o liberta da sua natural escravidão ao pecado e, somente pela sua graça, o habilita a querer e fazer com toda a liberdade o que é espiritualmente bom, mas isso de tal modo que, por causa da corrupção, ainda nele existente, o pecador não faz o bem perfeitamente, nem deseja somente o que é bom, mas também o que é mau[8].
Transformado, vivificado, nova criatura, nova natureza, Vida dada pelo Espírito Santo, adotado como filho de Deus, capaz de crer e obedecer a Deus, tem a vontade para o Bem (espiritualmente certo) restaurada; é agora capaz de crer em Deus e em suas promessas, isso é, agir conforme essa fé (viver pela fé), ser diligente em sua santificação e submisso a Vontade Santa.

Entretanto os efeitos da Queda – como diriam alguns, a podridão da morte do homem natural ainda permeia essa vida – o pecado ainda é uma ocorrência real na vida desse homem ressuscitado em Cristo. Assim sua vida ocorre sobre a influência de duas forças contrárias: a carne, velho homem vendido com escravo ao Pecado[9], natureza pecaminosa, que não foi totalmente extirpada ainda e o Espírito que fala na Palavra.

Daí temos que a Carne milita contra o Espírito no homem, e não no mundo. Afinal ninguém é tentado por outra coisa que não por suas próprias paixões.

4) Consumação:
É no estado de glória que a vontade do homem se torna perfeita e imutavelmente livre para o bem só[10].
Na consumação dos tempos, quando Cristo em Majestade e Glória reunir todos os seus, e transformar a corruptibilidade em eterna e perfeita comunhão consigo mesmo, o eleito não perderá sua liberdade de vontade, mas sua natureza será tão mudada e seu coração tão fiel que sua única vontade será fazer tudo conforme a Vontade do Pai. Não será por compulsão ou como autômato, mas a mais profunda liberdade para o Bem, o Bom, o Certo. Cumprindo assim a predeterminação que afirma o apóstolo Paulo: sermos a imagem de Cristo (Rm 8;28). Liberdade perfeita!

Conclui-se que livre-agência é uma característica dada por Deus ao homem, criado à sua imagem e semelhança, para que possa, dentro dos limites existenciais, naturais e sociais, expressar-se como ser humano, um ser moral distinto dos animais. Entretanto esta capacidade, está prejudicada atualmente, efeito do Pecado, da morte espiritual.

Já não há liberdade efetiva, pois um dos caminhos diversos foi impedido, e não só exteriormente (Gn 3;24), mas também por morte da boa vontade (Gn 2;17 e Rm 3;10); O homem natural já não procura o bem, nem mesmo o reconhece! Livremente faz aquilo que lhe é natural, escolhe apenas a forma como vai desobedecer. E como escreveu Heinrich Bullinger "... a vontade, que era livre, tornou-se uma vontade escrava. Agora ela serve ao pecado, não involuntária mas voluntariamente. Tanto é assim que o seu nome é “vontade”; não é “relutância”[11].

O homem morto em seus pecados não tem vontade para aquilo que é divino; logo não pode decidir fazer o que é espiritualmente bom. Sabendo que crer no Evangelho é algo bom, que produz bondade, que é segundo o conselho divino, ao ouvir o Evangelho, o homem natural não tem vontade de obedecer (crer) esse Evangelho, pois está indisposto (morto) para Deus.

Naturalmente o homem rejeitará a Graça anunciada (o perdão dos pecados em Cristo). Por si só, porque morto, incapaz de agir de acordo com a justiça divina, permanecerá rejeitando a Graça todas as vezes que está lhe for anunciada. E se nada mudar a condição do homem natural (espiritualmente morto), sua rejeição será para a condenação eterna. Por que a “condição moral do coração determina o ato da vontade, mas o ato da vontade, não pode mudar a condição moral do coração”[12].

E mais no que “depende, no todo ou em parte, para sua aceitação diante de Deus, e para sua justificação diante de Seus olhos, seja o que for, em que você descansa, e confia, para a obtenção de graça ou glória; se for algo menos do que Deus em Cristo, você é um idólatra...”[13]. Ou seja, confiar em si mesmo, no poder de decisão natural do ser humano, torna este ainda mais culpado diante de Deus; “o Livre-Arbítrio foi suficiente para levar Adão para longe de Deus, mas nunca foi capaz de trazê-lo de volta”.

Havendo então a renovação da Graça (ação do Espírito Santo), o homem é habilitado (novamente) para o bem. O homem que antes morto, revive, se instala uma nova natureza capaz de desejar obedecer a Deus. Essa nova natureza, produzirá frutos: a sede pela verdade divina, a fome pela justiça divina, a busca pela vontade divina! Será compatível com a santificação sem a qual ninguém verá a Deus consumada plenamente na morada eterna.

E como bem nos lembra Calvino[14], “Agostinho trata desta questão muito bem, e, como todas as demais, a resolve muito atinadamente, dizendo:”
“...Deus, que é Senhor de todas as coisas, e que a todas criou boas, e previu que o mal surgiria do bom, e soube que a sua onipotente bondade lhe convinha mais converter o mal em bem do que não permitir que o mal existisse, ordenou de tal maneira a vida dos anjos e dos homens que primeiro quis mostrar as forças do livre-arbítrio, e depois o que podia o benefício de sua graça e justo juízo”.
___________________
[1] No sentido de mente, como um todo.
[2] Metáfora comumente usada para um problema insolúvel (desatando um nó impossível) resolvido facilmente.
[3] O uso me parece certo, entretanto é inegável que a maioria dos teólogos e comentaristas renomados mais antigos usam livre-arbítrio e não livre-agência.
[4] Há certa definição de livre-arbítrio como a capacidade de decidir contra a própria natureza. Esta acepção além de errática e inútil, é biblicamente impossível: Errática – como agir de maneira contrária ao, necessariamente, natural ou ontológico? Qualquer ação assim seria uma sobreposição de uma natureza, que mudada, logo, agiu de modo natural a sua (nova) natureza. Inútil – pois serve apenas para provar uma nulidade; tal coisa não acontece. Indo ao absurdo é como esperar que Deus aja diabolicamente ou que o Diabo aja com a qualidade da benesse divina. Biblicamente impossível – Deus não pode mentir, isso não lhe é natural (2 Tm 2;13), mas alguém duvida que Deus tem livre juízo e autodeterminação?
[5] A escolha da CFW como modelo, põe fim a uma eventual acusação que o tema não é tratado pelos reformados do modo como apresento; sela a certeza da manutenção da confessionalidade calvinista afinal é a mais completa e aceita Confissão Reformada, depurada e consoantes com as outras expressões; o que se provado nela, em geral, de forma convincente, pode se afirmar como cosmovisão reformada.
[6] Do Livre Arbítrio, cap. IX, I e II.
[7] Do Livre Arbítrio, cap. IX, III.
[8] Do Livre Arbítrio, cap. IX, IV.
[9] Carne já liberta mais ainda aleijada, manca e mal-acostumada ao vício do pecado.
[10] Do Livre Arbítrio, cap. IX, V.
[11] Segunda Confissão Helvética, IX, 2.
[12] A. A. Hodge – CFW Comentada, pág 225.
[13] A. M. Toplady – Contra o Arminianismo e Seu Ídolo Dourado, o Livre-Arbítrio, pág 3.
[14] Institutas da Religião Cristã, UMESP, pág 409."

Autor: Reverendo Esli Soares

Nenhum comentário:

Postar um comentário