Três objeções comuns lançadas contra a doutrina Bíblica Reformada dos Decretos Divinos [incluindo a
Predestinação], são – “1. É incoerente com a liberdade humana?” “2. Elimina
todos os motivos de esforços piedosos?” “3. Faz de Deus autor do pecado?” Com a
palavra o renomado dogmático:
“1. É INCOERENTE COM A LIBERDADE MORAL DO HOMEM. O homem é um
agente livre, com capacidade de autodeterminação racional. Ele pode refletir
sobre uma inteligente escolha de certos fins, e também pode determinar sua ação
com respeito a eles.1
Contudo, o decreto leva necessidade consigo. Deus decretou realizar todas as
coisas, ou, se não as decretou, ao menos determinou que isso viesse a
acontecer. Ele decidiu qual o curso da vida do homem por meio disso. Em
resposta a esta objeção, pode-se dizer que a Bíblia certamente não parte da
suposição de que o decreto divino é incoerente com a livre ação de homem. Ela
revela claramente que Deus decretou os atos livres do homem, mas também que os
seus fatores não são menos livres e, portanto, responsáveis por seus atos, Gn
50.19, 20; At 2.23; 4.27, 28. Foi determinado que os judeus levassem a efeito a
crucificação de Jesus; todavia, foram perfeitamente livres em seu procedimento,
e foram responsabilizados por este crime. Não há nem uma só indicação na
Escritura de que os escritores vêem alguma contradição quanto a esses pontos.
Eles jamais procuram harmonizar ambos. Isto bem poderia levar-nos a conter-nos,
não supondo uma contradição aqui, mesmo que não consigamos conciliar as duas
verdades. Além disso, deve-se em mente que Deus não decretou realizar por Sua
ação pessoal e direta o que quer que venha a acontecer. O decreto divino só dá
certeza aos eventos, mas não implica que Deus os realizará ativamente, de modo
que a questão se reduz a isto: se a certeza prévia se coaduna com a livre ação.
Ora, a experiência nos ensina que podemos estar razoavelmente certos quanto ao
curso de ação que alguém que conhecemos seguira, sem infringir em nada a sua
liberdade. O profeta Jeremias predisse que os caldeus tomariam Jerusalém. Para
ele, o evento por vir era uma certeza e, contudo, os caldeus seguiram
livremente os seus desejos ao cumprirem a predição. Essa certeza é, na verdade,
incoerente com a liberdade da indiferença, no conceito pelagiano, segundo o
qual a vontade do homem não é determinada de modo algum, mas é inteiramente
indeterminada, de sorte que, em cada volição, ela pode decidir, não somente
face a toda indução externa, mas também a todos os desejos, inclinações,
julgamentos e considerações internos, e mesmo a todo o caráter e estado
interior do homem. Mas agora se reconhece em geral que tal liberdade da vontade
é uma ficção psicológica. Todavia, o decreto não é necessariamente incoerente
com a liberdade humana no sentido de autodeterminação racional, segundo a qual
o homem age livremente em harmonia com os seus pensamentos e julgamentos
anteriores, suas inclinações e desejos, e com todo o seu caráter. Esta
liberdade também tem suas leis, e quanto mais familiarizados estivermos com
elas, mais seguros poderemos estar do que um agente livre fará em certas
circunstâncias. Foi Deus que estabeleceu essas leis. Naturalmente, devemos
precaver-nos contra todo determinismo - materialista, panteísta e racionalista
– em nossa concepção da liberdade no sentido de autodeterminação racional. O
decreto não é mais incoerente com a livre ação que a presciência e, contudo, os
seus oponentes, que geralmente são dos tipos semipelagiano e arminiano,
professam a fé na presciência divina. Por Sua presciência Deus conhece desde
toda a eternidade a futurição certa de todos os eventos. Ela está baseada em
Sua predeterminação, pela qual Deus determinou a certeza futura deles.
Naturalmente, o arminiano dirá que não acredita numa presciência baseada num
decreto que torna certas todas as coisas, mas numa presciência de fatos e
eventos contingentes, que dependem do livre arbítrio do homem e, portanto, são
indeterminados. Pois bem, tal presciência das livres ações do homem é possível,
se o homem, mesmo com a sua liberdade, age em harmonia com as leis divinamente
estabelecidas, o que de novo introduz o elemento de certeza; mas, ao que
parece, é impossível conhecer antecipadamente eventos que dependem por completo
da decisão casual de uma vontade alheia a principio que podem em qualquer
ocasião, independentemente do estado de espírito, das condições existentes, e
dos motivos que se apresentam à mente, seguir diferentes direções. Eventos
dessa natureza só podem ser conhecidos previamente como puras possibilidades. (1 Cf. Watson, Theological
Institutes, Part II, Chap. XXVIII; Miley, Systematic Theology, II, p.271 s.)
2. O DECRETO ELIMINA TODOS OS MOTIVOS PARA ESFORÇO. Esta objeção
tem que ver com aquelas pessoas que dizem com naturalidade que, se todas as
coisas têm que acontecer como Deus as determinou, elas não necessitam
preocupar-se com o futuro e não precisam fazer nenhum esforço para obter a
salvação. Mas isso não está certo. No caso das pessoas que falam desse modo,
geralmente a coisa não passa de mera desculpa para indolência e desobediência.
Os decretos divinos não são dirigidos aos homens como uma regra de ação, e não
podem constituir uma regra assim, visto que o conteúdo deles só se torna
conhecido pela sua concretização, e depois desta. Há, porem, uma regra de ação
incorporada na Lei e no Evangelho, e essa regra dá aos homens a obrigação de
empregar os meios que Deus ordenou. Esta objeção também ignora a relação
lógica, determinada pelo decreto de Deus, entre os meios e o fim a ser obtido.
O decreto inclui não somente os diversos fatos da vida humana, mas também as
livres ações humanas, logicamente anteriores aos resultados e destinadas a
produzilos. Era absolutamente certo que os que estavam no navio com Paulo (At
27) seriam salvos,mas era igualmente certo que, para assegurar este fim, os
marinheiros tinham que permanecer a bordo. E desde que o decreto estabeleceu
uma interrelação entre os meios e os fins, os fins são decretados somente como
resultados dos meios, o decreto incentiva esforço, em vez de desestimula-lo. A
firme crença no fato de que, segundo o decreto divino, o sucesso será a
recompensa do labor, estimula esforços corajosos e perseverantes. Com base
direta no decreto, a Escritura nos concita a utilizar diligentemente os meios
designados, Fp 2.13; Ef 2.10.
3. O DECRETO FAZ DE DEUS O AUTOR DO PECADO. Esta, se fosse
verdadeira, seria naturalmente uma objeção insuperável, pois Deus não pode ser
o autor do pecado. Isto se infere igualmente na Escritura, Sl 92.15; Ec 7.29;
Tg 1.13; 1 Jo 1.5, da lei de Deus que proíbe todo 98 pecado, e da santidade de
Deus. Mas a acusação não é verdadeira; o decreto simplesmente faz de Deus o
Autor de seres morais livres, eles próprios os autores do pecado. Deus decreta
sustentar a livre agencia deles, regular as circunstâncias da sua vida, e
permitir que a livre agencia seja exercida numa multidão de atos, dos quais
alguns são pecaminosos. Por boas e santas razões, Ele dá certeza ao
acontecimento desses atos, mas não decreta acionar efetivamente esses maus
desejos ou más escolhas no homem. O decreto concernente ao pecado não é um
decreto efetivo mas permissivo, ou seja, um decreto para permitir o pecado, em
distinção de um decreto para produzir o pecado sendo Deus a sua causa
eficiente. Não há dificuldade ligada ao decreto que não se ligue a uma simples
permissão passiva daquilo que Ele poderia muito bem impedir, como os
arminianos, que geralmente levantam essa objeção, supõem. O problema da relação
de Deus com o pecado continua sendo um mistério para nos, mistério que não
somos capazes de resolver. Pode-se dizer, porem, que o Seu decreto para
permitir o pecado, embora as segure a entrada do pecado no mundo, não significa
que Ele tem prazer nele; significa somente que Ele considerou sábio, com o
propósito da Sua auto-revelação, permitir o mal moral, por mais detestável que
seja à Sua natureza.”
Fonte: Teologia Sistemática, pp.
100, 101,102