Recentemente irmãos do arraial
arminiano tem alvorado a bandeira de que os ensinos calvinistas, especialmente
relacionados aos chamados cinco pontos do calvinismo (ou Tulip), não era uma doutrina da
igreja primitiva, portanto, não tem um amparo de uma interpretação antiga. O
irmão Clóvis, editor do recomendável blog Cinco
Solas, postou observações sábias a respeito dos pais e a doutrina da expiação (AQUI).
Eu resolvi escrever algo a
respeito, me concentrando, a princípio, nos Padres
Apóstolicos. Considerados a primeira geração cristã de escritores, leigos e
pastores, na geração imediata aos apóstolos. Devo também lembrar que estou
refém da tradução que possuo da Editora Paulus. Qualquer imprecisão em meu
julgamento, além de minhas próprias limitações, estou confiante na tradução que
tenho em mãos.
Devemos dizer que de forma geral,
os Padres Apostólicos não satisfazem o
pensamento calvinista em seu conteúdo majoritário.
Minha preocupação com essa postagem é julgá-los a partir do que escreveram que
de alguma forma afeta o calvinismo e o arminianismo. Ao ler o livro, notei que
em alguns pontos, o arminiano também terá que ficar com um pé (até dois) atrás.
Os Padres Apostólicos usam uma linguagem da vida prática, que é
normalmente vista em arminianos e calvinistas – calvinista fala de perseverar
na obediência, o arminiano fala de eleição, porém, tais termos, não raro, são mais identificados com o grupo oposto. O
ponto em questão é que pouca reflexão houve em direção ao que Deus decidiu na
eternidade e como ele aplicaria tal decisão. Eles dissertaram mais da vida do
cristão do que das decisões eternas de Deus em relação a eles. Vejamos:
1.
Clemente Romano:
Sua preocupação não foi
dogmática, mas o que estava relacionado com a ‘vida, a fé, penitencia’, etc. (Aos Coríntios 62.1,2,3). Isso não
significa que ao tratar de coisas práticas da fé, ele não tenha tido como pano
de fundo a doutrina relacionada ao assunto em mira. No meu modo de ver,
Clemente é um cristão ‘Arminiano’ (compreendam meu anacronismo). Ainda
que em um momento ou outro, sua linguagem possa agradar algum calvinista,
o uso que ele faz do termo eleito não é calvinista ao pesar toda sua carta. O
uso que ele faz de eleito é sinônimo de cristão fiel, o que o calvinista não
nega. Mas sem nenhuma construção mais refinada de ideia de eleição eterna ao
olhar o indivíduo.
“Dia
e noite, sustentáveis combate em favor da fraternidade, a fim de conservar
íntegro, por meio da misericórdia e da consciência, o número dos eleitos.”
(2.4)
“Nós,
portanto, lutamos para sermos encontrados no número dos que o esperam, a fim de
participarmos dos dons prometidos.” (35.4).
“Melhor
seria para ele não ter nascido, do que escandalizar um só dos meus eleitos!”
(46.8[nessa citação ele troca criança por eleito]).
“Serás
inocente com o homem inocente, serás eleito com o homem eleito, mas com o
perverso te perverterás [...] Essa
bem-aventurança é para os que Deus escolheu por meio de Jesus Cristo nosso
Senhor. A ele, a glória pelos séculos dos séculos. Amém.” (49.5).
“Seus
corações insensatos se endureceram, depois dos sinais e prodígios que Moisés, o
servidor de Deus, tinha realizado no Egito.” (51.5)
“[...]
pediremos que o Criador do universo conserve intacto o número dos seus eleitos
no mundo inteiro, por meio do seu amadíssimo Filho Jesus nosso Senhor, por meio
do qual nos chamou das trevas, da ignorância ao conhecimento do seu nome
glorioso [...]” (52.2).
“Quanto
ao resto, que o Deus que tudo vê e é Senhor dos espíritos e de todos os seres
vivos – que elegeu o Senhor Jesus Cristo e, por meio dele, nos elegeu para
sermos seu povo particular – conceda a toda pessoa que invoca o seu nome
magnifico e santo, a fé, o temor, a paz e a perseverança.” (64.1).
2.
Inácio de Antioquia.
Em Inácio nasce a supremacia de
um bispo sobre os demais presbíteros. Embora notamos muitos dizendo que surgiu
aqui o ‘clero’ Católico, é verdade também que surgiu o clero protestante. Provavelmente,
temos aí, a mais antiga prova de que o batismo cristão deve ser realizado apenas
por Ministros Ordenados (Esmirniotas 8.2). Inácio chama opositores da fé de
‘feras selvagens, cães raivosos’ (Efésios 4.1; 7.1). Foi um cristão que a bem
dizer estimulou o martírio, sendo um dos tais. Tal como Clemente, mas com menos
conteúdo, não se preocupou muito com doutrinas, mas com a vida piedosa. Jesus
Cristo é chamado constantemente de “Nosso Deus”. Veja o que nos interessa:
“[...]
à Igreja que foi grandemente abençoada com plenitude de Deus Pai, predestinada
antes dos séculos para existir sempre, para uma glória que não passa,
inabalavelmente unida, escolhida na paixão verdadeira, pela vontade do pai e de
Jesus Cristo, nosso Deus. À Igreja digna de ser chamada feliz, que está em
Éfeso [...]” (Efésios, Saudações).
A citação acima está em perfeita
harmonia com a introdução da carta de Paulo aos mesmos destinatários. Pode ser
alvo de interpretação arminiana e calvinista, tanto quando o é a carta
inspirada. O grande ponto é – a igreja em mente aí são as pessoas ou a
instituição espiritual? Creio, que se Inácio repete apenas os dizeres
de Paulo, ele precisa pensar nas pessoas que, como igreja, foram escolhidas.
Deus não escolheu vagas. Ele escolheu pessoas para preencher as vagas (Jo
14.1,2).
“Agatópodo,
homem eleito que, tendo renunciado à vida, me acompanha desde a Síria [...]” (Aos
Filadelfienses 11.1).
3.
Policarpo.
O grande mártir cristão [Diferente de seu mentor, Inácio, ele não faz
distinção entre o bispo e os presbíteros] Ele pode também nos revelar como
não é possível encontrar uma definição para o veio a ser o calvinismo, ainda
que apareçam lampejos que possam apontar nessa direção – ainda que seja muita
escassa qualquer coisa que precisamos para construir uma afirmativa. A igreja
que testemunhou a vida e morte de Policarpo, parece usar eleito na mesma
concepção dos demais Padres, porém, com o viés de que foram fieis até a morte.
“as
quais são os diademas daqueles que verdadeiramente foram escolhidos por Deus e
nosso Senhor.” (II Filipenses 1.1).
A igreja que testemunhou o martírio de Policarpo escreveu:
“Toda
a multidão admirou-se de ver tão grande diferença entre os incrédulos e os
eleitos” (16.1).
“Com
ele glória a Deus Pai e ao Espírito Santo, para a salvação dos santos eleitos.”
(22.1).
“Que
o Senhor Jesus Cristo me reúna também com seus eleitos na glória do céu.”
(22.5).
4.
Hermas
Sofrível ler as visões de Hermas.
Ele não foi instruído na doutrina bíblica. Demonstra pouco, ou quase nenhum
conhecimento da Palavra (Um exemplo: 32.2 ele pergunta na visão se viúvo pode
casar novamente). Seu conceito de salvação e perdão, é péssimo. Ele limita a
graça ao batismo, e se pecar o crente com uma penitencia subsequente, pode
receber perdão depois de um tempo. Um anjo da penitencia está envolvido nisso. Em
um sentido doutrinário ele não é cristão. Sua
cristologia é herética (78.1; 89.2).
Apesar de demonstrar algum credo cristão correto e uma confissão de salvação do
nome do Senhor (26.1; 23.4). Se seus erros são frutos de sua ignorância,
deixemos nas mãos do Senhor que tudo julga justamente. Porém, não podemos
concordar com o pensamento de Hermas e suas visões. Ele agradaria mais um
semi-pelagiano. Não agradaria um arminiano, muito menos um calvinista.
Ele usa o termo eleito várias
vezes (3.4; 5.3; 16.3; 17.9) como sinônimo de crente. E em uma dessas vezes,
está claro que ele não compartilharia do credo calvinista também:
“O
Senhor jurou por sua glória a respeito de seus eleitos: se depois deste dia [da
conversão, ou da penitencia], fixado como limite, ainda se cometer um só
pecado, eles não obterão a salvação, pois a penitência para os justos tem
limite.” (6.5).
Hermas, portanto, não se
qualifica para ser representante do pensamento da época a respeito das doutrinas
da graça. Ele não seria arminiano, calvinista – ele não seria cristão ortodoxo.
5.
Barnabé.
Esse cristão segue um padrão de interpretação
altamente alegórico do VT, e essa sua preocupação inicial. Algumas de suas
objeções ao judaísmo são bem duras. Ele
por fim se preocupa com a vida piedosa. Não há também uma doutrina refinada a
respeito da polêmica em mira. Assim como os demais era ‘mais arminiano’ na
maioria dos casos. Vejamos:
“tomais
cuidado para não ficardes como certas pessoas, que acumulam pecados, dizendo
que a Aliança está garantida para nós.” (4.6)
Na sequencia Barnabé reafirma que
a Aliança é da Igreja como corpo, mas não como indivíduos. E aparentemente
mostra que o que crente salvo, pode perder a salvação:
“Tomemos
cuidado para não ficarmos tranquilos como chamados, adormecendo sobre nossos
pecados, de modo que o príncipe do mal se apodere de nos e nos afaste do reino
do Senhor.” (4.13).
Obs: Essa é uma linguagem bíblica. Os
calvinistas não têm problemas com ela. Os crentes devem cuidar de si mesmos
tendo certa a condenação se não permanecerem na graça. Porém, não percebemos
que Barnabé em outro momento faça alguma descrição de uma segurança eterna.
“Ele,
portanto, circuncidou nossos ouvidos, para que escutemos a palavra e creiamos.”
(9.3).
Aqui percebemos a graça de Deus
capacitando o homem para entender o Evangelho – que arminianos e calvinistas
creem. A grande questão é se essa circuncisão atingiu seu objetivo –
“para que creiamos”.
6.
Didaquê.
Um documento cristão muito
antigo, que servia de catecúmeno para iniciantes na fé. É como os demais
escritos, totalmente prático, e pouco teológico, mas teologicamente satisfatório.
Não trata de nada do tema. Nem em favor do arminianismo nem em favor do
calvinismo. É um documento que incomoda
os imersionistas, pois chama de batismo o “derramar água”, não apresenta algo
que os pedobatistas esperariam, pois fala apenas do batismo de adultos. É um
bom testemunho em favor da doxologia do Pai Nosso, e do batismo trinitário (Mt
6.13; 28.19).
CONCLUSÃO
Os Padres Apóstolicos precisariam de uma refinada para entrarem na
escola arminiana, mas pertenceriam a esse seguimento, com certeza. Evitando
alguns termos que poderiam dar alguma margem para especulações. Da mesma forma
eles não apresentaram uma doutrina a respeito da justificação, nos termos
teológicos e bíblicos que conhecemos. A doutrina da trindade era presente, mas
também não possuía uma definição tão aguçada quanto apareceu em Nicéia e
Atanásio, que satisfez plenamente os dados bíblicos. Enquanto a eclesiologia
era problemática na maioria dos casos, especialmente com forte tendências a um
conceito de sacramentos que agrada mais aos católicos.
Podemos dizer que enquanto os
Credos encontrou a seiva bíblica da divindade com mais precisão, a Reforma cuidou
das doutrinas da graça, o que foi parcialmente trabalhado por Agostinho, mas
redundou na doutrina da justificação bíblica, anteriormente esquecida. E os que
fizeram isso, possuíam uma concepção mais calvinista.
Os Pais da Igreja foram homens extraordinários. Sobre alguns assuntos a teologia deles não era muito boa e alguns escreveram coisas sem fundamento, mas foram eles que defenderam as doutrinas essencias dos ataques das seitas da época. Gosto muito dos Pais apostólicos, mas tenho preferencia pelos Pais do período posterior, como Agostinho e Atanásio. A teologia deles era mais bíblica e refinada do que a teologia dos Pais apostólicos. Em relação ao calvinismo, o que mais se aproxima é Agostinho. Aliás, Calvino era apaixonado pela teologia de Agostinho. Muito bom esse texto sobre os Pais. Paz e graça, Luciano.
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