sábado, 28 de fevereiro de 2015

Entendendo a doutrina do ‘Decreto’ – Deus é autor do pecado?

Hoje, e sempre, calvinistas e arminianos vivem de caricaturas. Como já escrevi aqui no blog, essa prática é de ambos os lados. Da parte de calvinistas é comum ler e ouvir eles dizerem que para os arminianos Deus não é soberano, já que o homem escolhe aceitar ou rejeitar a salvação. Segundo a caricatura calvinista, Deus ficaria frustrado assim. O que me pergunto é se Deus concedesse ao homem a escolha de sua salvação (usando nesse caso a graça preveniente), onde é que ele não seria soberano? Já que tal chance foi uma concessão do Deus Soberano, não vejo ausência de Soberania nessa postura. 

Além disso, devemos lembrar que nem todo arminiano tem consciência da postura clássica dessa escola. Infelizmente, no seio pentecostal as pessoas pensam mais como semi-pelagianos (por causa da desinformação), do que como arminianos propriamente ditos. Daí fazermos um julgamento a partir dessa postura limitada, é uma desonestidade de referência.

Por outro lado, e é o que vou tratar nessa postagem, ler arminianos dizerem que o calvinista faz de Deus autor do pecado, do mal (contraposto ao “bem” como princípio), e do mau (contraposto ao “bom” como atividades), é igualmente uma caricatura. É triste ler, como já li, que o Deus calvinista e o diabo não tem diferença. Lamentavelmente, algo nessa direção foi escrito por nosso grande irmão John Wesley, o avivalista. Mostrarei com base em nossos escritos Confessionais, que essa é uma ‘má compreensão’ do que os Reformados querem dizer com a doutrina do decreto e o total domínio divino das coisas que ocorrem no mundo.

Esclarecimentos: ‘Calvinismos’, ‘Calvinianos’, Calvinistas e Reformados. Preciso esclarecer algo antes de labutar com o tema. Hoje percebemos um grande número de pessoas defendendo os cinco pontos do calvinismo e se identificando com a Fé Reformada. Porém, é necessário dizer, que existem “calvinistas ao seu próprio modo”. Além disso, defender os chamados cinco pontos do calvinismo, não é ser necessariamente Reformado, é bom dizer isso. E nem todo escritor calvinista pode ser considerado como representante da Fé Reformada, ainda que ele se identifique assim. Há também os que são calvinistas pois consideram os escritos de João Calvino como autoridade teológica final para todas as questões. Considero tais como “calvinianos”. Os calvinistas fluem com a Fé Reformada, mas não prescrevem necessariamente os postulados gerais das confissões, embora estão em acordo com elas na maioria dos casos. Por ultimo, Reformados são aqueles que aderem aos padrões confessionais produzidos por teólogos calvinistas, aceito por igrejas Reformadas. Para nós, João Calvino é uma peça importante para a construção dessa escola, mas não é a palavra final. Como disse o Rev. Ageu Magalhães, ‘com mais tempo, as Confissões tiveram uma reflexão teológica mais amadurecida do que Calvino’.

Essa diversidade pode ser vista em todo seguimento arminiano também. Percebemos, por exemplo, Norman Geisler sendo arminiano de quatro pontos, mas chamando a si mesmo de “calvinista moderado”, como notamos no livro Eleitos, mas Livres. – o que foi um uso impróprio do termo. Ao passo que percebe-se que o arminianismo posterior foi mais longe do que o teólogo cristão protestante Jacó Armínio, no que tange a segurança eterna. Pelo que sabemos, Jacó Armínio não fechou a questão, nem positivamente, nem negativamente.

I. Deus é autor do pecado?
Em primeiro lugar, é necessário mostrar que é uma desonestidade intelectual de alguns arminianos dizerem que os Reformados fazem de Deus autor do pecado. Pode ser também uma desinformação, ou uma conclusão desonesta do que pensamos. Infelizmente também é verdade que alguns calvinistas defendam isso, com sutis variações filosóficas. Há um grau de culpa também saindo de nosso arraial. Mas devo lembrar que eles não são representativos. Não são Reformados nem Calvinistas, nem ‘Calvinianos’. São calvinistas ao seu prórpio modo.

No entanto, percebemos nitidamente, em dois momentos na Confissão de Fé de Westminster, que os reformados NÃO afirmam que Deus é autor do pecado. Perceba:
·        
“       "[...] nem Deus é o autor do pecado [...]” CFW III: I

·         “[...] Deus, que, sendo santíssimo e justíssimo, não pode ser o autor do pecado nem pode aprová-lo.” CFW V: IV

Comentando essa parte da CFW, A. A. Hodge diz:

“Permanece indiscutível que não se acha em Deus a causa* do pecado, (a) porque ele é absolutamente santo; (b) porque o pecado é em sua essência (violação da vontade de Deus); (c) porque o homem como agente livre é a causa responsável de suas próprias ações.” (Confissão de Fé de Westinster comentada por A. A. Hodge, p. 101[grifo meu]).

[*Notamos nesse uso, que A. A. Hodge discordaria de Gordon Clark, quando este faz uma distinção entre “causa” e “autoria”, do pecado. Sendo a primeira Deus e a segunda o homem pecador (Deus e o Mal, p. 80).]

Percebemos que a caricatura que fazem é desonesta e no mínimo serve aos intentos do diabo – pois esse é caluniador. Quando alguns arminianos dizem isso dos Reformados, quando os tais mostram que não.

Até mesmo João Calvino, aclamado por muitos e odiado por vários, afirma categoricamente:

“Só porque afirmo e mantenho que o mundo é dirigido e governado pela secreta providência de Deus, uma multidão de homens presunçosos se ergue contra mim, alegando que apresento Deus como autor do pecado.” (Livro dos Salmos, I, p.44,45; citado em João Calvino 500 anos, p. 65[grifo meu]).

Especialmente, a CFW poderia calar os caluniadores, mas sabemos que não será possível. Outros, que acusam os Reformados, apresentam razões dentro dos escritos de autores calvinistas, referências a um decreto para o mal. E é sobre a natureza dos mesmos que vamos falar agora.

II. A má compreensão do decreto pelos arminianos
Talvez alguns pensem que estou sendo pedante, mas independentemente disso, devo arriscar-me em dizer: os armnianos não entendem (passiva ou ativamente, não sei) o que cremos a respeito dos decretos. Vamos aos postulados Confessionais.

·         “Desde toda a eternidade, Deus, pelo muito sábio e santo conselho da sua própria vontade, ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porém de modo que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas. Ref. Isa. 45:6-7; Rom. 11:33; Heb. 6:17; Sal.5:4; Tiago 1:13-17; I João 1:5; Mat. 17:2; João 19:11; At.2:23; At. 4:27-28 e 27:23, 24, 34.” CFW - III.I

·         “Posto que, em relação à presciência e ao decreto de Deus, que é a causa primária, todas as coisas acontecem imutável e infalivelmente, contudo, pela mesma providência, Deus ordena que elas sucedam conforme a natureza das causas secundárias, necessárias, livre ou contingentemente. Ref. Jer. 32:19; At. 2:13; Gen. 8:22; Jer. 31:35; Isa.10:6-7.” CFW - V: II

·         “A onipotência, a sabedoria inescrutável e a infinita bondade de Deus, de tal maneira se manifestam na sua providência, que esta se estende até a primeira queda e a todos os outros pecados dos anjos e dos homens, e isto não por uma mera permissão, mas por uma permissão tal que, para os seus próprios e santos desígnios, sábia e poderosamente os limita, e regula e governa em uma múltipla dispensarão mas essa permissão é tal, que a pecaminosidade dessas transgressões procede tão somente da criatura e não de Deus, que, sendo santíssimo e justíssimo, não pode ser o autor do pecado nem pode aprová-lo. Ref. Isa. 45:7; Rom. 11:32-34; At. 4:27-28; Sal. 76:10; II Reis 19:28; At.14:16; Gen. 50:20; Isa. 10:12; I João 2:16; Sal. 50:21; Tiago 1:17.” CFW - V: IV

A preocupação Reformada em dizer isso, conforme revela a Bíblia, não é para colocar um conceito sobre o caráter de Deus em uma situação ‘ruim’. Antes, a preocuapação Reformada é demonstrar o domínio verdadeiro e real de Deus, para não cairmos num deísmo, [e agora, em um Teísmo Aberto]. Note que o que a fé Reformada diz a respeito do decreto é que o SENHOR tem o domínio pleno e não parcial. Não é uma permissão passiva, como que de alguém que não poderia fazer nada, ou que mesmo na situação, não esteja fazendo nada. Temos abundantes testemunhos bíblicos (Mt 10.28-31; etc.).

Como entender, desta forma, Deus ‘preordenar’ as coisas, incluindo, o pecado e o mal que as criaturas realizam? Com a palavra, o renomado teólogo Louis Berkhof:

“[a vontade do decreto] é a vontade de Deus pela qual ele projeta ou decreta tudo que virá acontecer, quer pretenda realizá-lo efetivamente (causativamente), quer permita que venha a ocorrer por meio da livre ações das Suas criaturas racionais.” “[a vontade do prazer de Deus] só se refere ao bem, e não ao mal; Cf Mt 11.26.” (Teologia Sistemática, p. 74).

Assim posto, concluímos que ...

Ø Nem tudo que Deus decreta é feito causativamente por ele...

III. Como Deus seria glorificado no pecado?
A Teologia Reformada está centrada na Glória de Deus (Rm 11.36). Esse é o tema do universo, a razão primeira e ultima de todas as coisas. A salvação do homem não é o tema central da Bíblia, mas a salvação do homem é para glorificar a Deus. Por isso deve nos interessar a evangelização e a missão. Encontrar pessoas que glorifiquem a Deus e sejam, com isso, salvas em Cristo (Rm 10.9,10; Fl 2.10). Diante disso, alguns se perguntam como a situação do mundo em pecado glorificaria a Deus, como notamos nas afirmações de autores Reformados? Como pedofilia, homicídios, terrorismo, tortura, glorificaria a um Deus santo?

Minha resposta a essas perguntas segue a alguns princípios – Deus diz em Sua Palavra que o pecado é prejudicial (Gn 2.17). Deus diz em Sua Palavra que as pessoas que se afastam Dele seriam animalescas ( II Tm 3.3,4). Deus diz em Sua Palavra que colocou o mundo todo em maldição por causa do pecado (Rm 8.20,21); Embora não podemos ‘fracionar’ Deus em atributos, nós só podemos conceber que os atributos da verdade e da justiça são os meios pelos quais Deus é glorificado nas ações más dos homens (Rm 3.4). Deus em sua bondade não é glorificado quando um homem queima outro nas chamas, mas Ele é glorificado como justo quando queimar eternamente os ímpios no inferno (Ap 20.10).

IV. A Sincera Oferta do Evangelho e o Decreto.
Quando Deus viu a humanidade caída, como é a posição infralapsariana das Confissões, não desejou Ele que ela saísse daquela condição? Suas manifestações constantes na Escritura de enviar essa mensagem de perdão e arrependimento a todos os homens e em todos os lugares é uma evidencia, não apenas da Sincera Oferta do Evangelho, como atesta a Bíblia (Ez 18.31,32; Mt 23.37; At 17.27, etc.), mas que há em Deus um desejo sincero em ver os que ouvem seu convite aceita-lo! Obvio que sim. E a Bíblia está repleta desse desejo. Isso é chamado de Sincera Oferta do Evangelho – defendido por muitos Reformados Confessionais:

João Calvino -

“Não há nada que Deus deseja mais ardentemente do que, que aqueles que estejam perecendo e correndo para a destruição retornem o caminho de segurança” “Se alguém mais contestar – isso é fazer Deus agir com duplicidade – a resposta está preparada, que Deus sempre quer a mesma coisa, embora por diferentes meios e modo inescrutável para nós.” (Citado em Evangelização Teocêntrica, p. 30).

“Afirmamos que Deus não quer a morte do pecador, uma vez que ele chama todos igualmente ao arrependimento e promete a si mesmo estar preparado para recebê-los se eles seriamente se arrependerem. Se alguém objetasse – então não há eleição de Deus pela qual ele predestinou um número fixo para a salvação – a resposta estaria à mão: o Profeta não fala aqui do conselho secreto de Deus, mas só chama do desespero homens miseráveis, para que eles se apreendam a esperança de perdão, e se arrependam e abracem a salvação oferecida.” (Citado em Salvos Pela Graça, pp. 80,81).

Herman Bavinck -

 “ o chamamento, não obstante, é de grande valor e significação também para aqueles que o rejeitam. Para todos, sem exceção, é prova do infinito amor de Deus, e sela a declaração de que Ele não tem prazer na morte do pecador, mas que ele se volte e viva.” ( Dogmatick, IV, 7 – citado em Evangelização Teocêntrica, p. 31).

R. B. Kuiper -

 “O Deus de amor dispôs que o Evangelho será pregado em toda parte, e Ele nos informa em Sua Palavra que deseja a salvação de todo pecador alcançado pelo Evangelho.” (Evangelização Teocêntrica, p. 21).

“Fato da maior importância é que a Palavra de Deus ensina inequivocamente, tanto a reprovação divina, como a universalidade e a sinceridade do oferecimento do Evangelho.” (Evangelização Teocêntrica, p. 29).

“[o] sincero oferecimento do Evangelho é firme e ensinado em Ezequiel 33.11, 2 Pedro 2.9 e em outra partes mais.” (Evangelização Teocêntrica, p. 29).

John Murray –

“O amor ou benignidade por detrás dessa oferta, não é nada menos que a vontade para essa salvação.” (http://www.monergismo.com/textos/evangelismo/prefacio-hipercalvinismo_gerstner.pdf).

Antony Hoekema –

“ [...] a pregação do evangelho é uma bem-intencionada oferta do evangelho, não só da parte do pregador, mas da parte de Deus, a todos que ouvem; e que Deus séria e honestamente deseja a salvação de todos aos quais o convite do evangelho chega.” (Salvos Pela Graça, p. 80).

Sínodo de Dort -

“Todos os que são chamados pelo evangelho são seriamente chamados. Séria e genuinamente Deus faz conhecido na sua Palavras aquilo que o agrada: que aqueles que são chamados se acheguem a ele. Seriamente promete também descanso para a alma e vida eterna a todos que venham a ele e creiam.” Cânones de Dort, III, 8.

O Catecismo Maior de Westminster perguntas 67 e 68 mostra que a diferença está no tempo de Deus, na eficácia da oferta por Ele mudar o individuo, e não na sua sinceridade. Pois os homens ímpios

“pela sua negligência e o desprezo voluntário da graça que é oferecida, são justamente deixados na sua incredulidade e nunca se chegam sinceramente a Jesus Cristo.”

Portanto, creio que nos planos eternos de Deus e em seu constante relacionamento com o homem caído, ele não mudou sua disposição iniciada na eternidade, de ver todos tendo um relacionamento pacífico com Ele. Infelizmente, a Queda – federativa e experimental – demonstra que esse desejo do prazer de Deus foi e é rejeitado pelos pecadores – no Éden e em sua experiência diária. É tão certo esse desejo de Deus, como o é a rejeição do homem.

Ø Nem tudo que Deus deseja ele decreta...


Nessa rejeição geral, (determinada e prevista) devido a depravação total, Ele interveio com um decreto, de que dentre os tais, ele salvaria muitos – para isso, ele envia Seu Filho para resgatar os que por Deus foram eleitos, e somente a esses. O oferecimento da morte de Cristo cai no que Deus desejou, isto é, que todos fossem salvos – se fosse o caso de eles aceitarem, o que não acontece, por causa da livre escolha pelo pecado. Efetivamente, no entanto, sua morte foi objetiva e eficaz por aqueles que Deus escolheu, que é a única forma de reverter o quadro da rejeição generalizada.  

Um comentário:

  1. Artigo por demais esclarecedor, indico e recomendo

    Marcos Lopez
    Espada Triunfante - antiga Sociedade pensadores cristãos

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