quinta-feira, 5 de abril de 2012

COSMOVISÕES parte 6: o teste da abrangência na prática (o pastor reformado e o espírita)


Por Lucio A. de Oliveira

Estivemos observando em artigos anteriores que nossas pressuposições são extremamente influentes em nossas interpretações dos fatos ( leia esta série para saber de alguns exemplos ), e que nossas pressuposições fazem parte de um grande corpo de ideias inter-relacionadas chamado cosmovisão ( leia sobre isso aqui ).
Pois bem, existem várias formas de confrontar uma cosmovisão ( veja a série sobre cosmovisões parte 3, 4 e 5 ). Podemos fazê-lo apontando contradições na cosmovisão rival (um movimento chamado reductio ad absurdum).  Um exemplo disso é o argumento epistemológico, no qual confronta a epistemologia com a metafísica antropológica do naturalismo ( um exemplo [note que, na época, eu estava envolvido com a apologética clássica] ).
Uma outra forma que observamos, foi o teste da abrangência. A cosmovisão deve ajudar-nos a explicar o mundo. Funciona como óculos. Se não usarmos um óculos bom, não vamos perceber direito o mundo ao nosso redor, e tropeços, encontrões e demais perigos nos esperam.
Dessa forma, minha cosmovisão deve lidar com os fatos, e não negá-los. Uma cosmovisão que não consiga explicar os fatos não é uma cosmovisão verdadeira.
Com essa perspectiva, convido-os a observar uma aplicação prática e bíblica desse princípio e método apologético ante uma experiência sobrenatural de um espírita. Pra deixar claro, minha cosmovisão precisa enquadrar o fato sem artifícios ad hoc, explicá-los.

Bom, vamos aos ‘fatos’.

Imaginem um personagem. Vamos nomeá-lo de João (qualquer semelhança é pura coincidência). João está no seu quarto, e sua mãe, viúva agora, lhe segreda algo. Ou melhor, imaginemos um diálogo em que João, pequeno, ouve sua mãe prometer que um dia o levaria pra conhecer a universidade de Princeton (ok, imaginemos também que João é nerd...hehe). Era uma promessa que ela fez só pra ele. Ela havia lhe contado que estava juntando um dinheiro pra isso, mas que ele não contasse pra ninguém.
Bom, quando sua mãe estava saindo do quarto, ela morre. Seja lá qual for o motivo imaginado. Sei lá, ela leva um tiro; tem um taque cárdia; explode uma bomba e deixa o João ferido e ela morta... enfim, ela morreu (em breve vão entender por qual motivo a matei agora).
Logo depois, um caridoso senhor espírita, amigo da família, vem à sua casa prestar condolências. Numa oportunidade, esse senhor começa a explicar para o garoto que seu espírito vai se reencarnar, blá blá blá... (o básico sobre o que ensinam os espíritas todos nós sabemos). Ok, João não acredita de imediato naquilo.
Passado alguns dias, João estava em casa, assistindo televisão, e eis que surge, na sua frente, um fantasma. Do nada! João fica um pouco desorientado, derruba algumas coisas com o susto, mas se recompõe, e, o que ele vê? Ninguém mais, ninguém menos, que sua mãe!
João resolve ser um pouco mais cético. Ele já tinha ouvido falar que isso não era de Deus. Mas o espírito se aproxima, com cautela, com delicadeza. Era o andar de sua mãe...
O espírito olha bem nos seus olhos, com um olhar amoroso, e diz:
_ Meu filhinho, não reconhece a mamãe?
Ao que João responde:
_ M... ma... mas como vou saber que é a senhora? – fala ele, gaguejando, trêmulo.
_ Bom... você contou aquilo que conversei com você, naquela última noite, pra alguém? – pergunta o espírito.
_ Não! Nunca falei com ninguém. Só eu sei! É mesmo! Me diga, se você é minha mãe, o que eu conversei com minha mãe naquele último dia? – pergunta João em tom triunfal. Aquela seria a prova cabal, pensa João. Se fosse ela, saberia responder. Somente eles dois sabiam!
O espírito delicadamente se aproxima, e com ternura materna diz:
_ Eu havia lhe prometido que o levaria à Princeton; e que eu estava juntando dinheiro pra isso.

Pronto. Depois disso, ela desaparece, ou eles conversam mais um pouco... não importa. Em determinado momento o ‘contato’ termina. João resolve procurar aquele senhor, que o identifica como um médium, ou alguma coisa assim, e lhe doutrina no espiritismo.

Depois de alguns anos, vem um pastor reformado, instruído na cosmovisão bíblica, conversar com João, tentando pregar o evangelho, e eis que surge o seguinte diálogo:
PASTOR: Mas João, o espiritismo não é de Deus, a Bíblia proíbe a consulta aos mortos...
JOÃO: Bom, a Bíblia proíbe, mas não diz que não existe. Se ela proíbe, é porque existe, não?
PASTOR: Não, não, de forma alguma. A Bíblia também diz em Êxodo 20:3 para não termos outros deuses diante de Deus. É uma proibição. Mas não quer dizer que existem, de fato, outros deuses. E isso é assumido pela Bíblia. Ela diz que os deuses das outras nações não eram deuses de verdade [Jeremias 2:11a, e.g., diz: ‘Acaso trocou alguma nação os seus deuses, que contudo não são deuses?’ ou Isaías 44:6 "Eu sou o primeiro e o último, e além de mim não há Deus"].
JOÃO: Ok, pastor, mas o senhor não sabe o que eu vi. Tenho a prova cabal de que eles existem e podem estabelecer contato conosco...
PASTOR: Antes, preciso corrigi-lo em um ponto. Não discordamos quanto à sua existência após a morte. Certamente eles existem. Mas como estão e o que lhes acontecerá no futuro é o ponto em que discordamos.
JOÃO: Pois bem, vou narrar-lhe uma experiência que autentica os ensinamentos que me foram dados. Eu já tive contatos com a minha mãe. Vai dizer que é mentira minha? Acredita?
PASTOR: Bom, eu e você sabemos que existem muitos charlatões por aí, alegando experiências místicas e tudo o mais, quando na verdade não viram nada. Mas, quanto a seu caso, não preciso negá-lo. Se você viu, está visto. Agora, que era sua mãe é outra história...
JOÃO: Bom, ela me provou ser ela! Antes dela morrer, me prometeu algo. Algo que só eu e ela sabíamos. Ela não havia contado pra ninguém, e nem eu. Estávamos só eu e ela ali no quarto, e quando ela saiu, morreu. Então, um dia, sua alma aparece a mim, e, ante meu ceticismo, fala daquele segredo, provando peremptoriamente ser minha mãe. Não tem como contestar!
PASTOR: João, perceba que, presumindo ter você realmente visto tudo isso, vou reinterpretar os fatos à luz de minha cosmovisão. Não negarei os fatos, só vou dar uma outra perspectiva dos mesmos. Quanto a qual perspectiva está correta, vai depender de qual cosmovisão é a correta. Por hora, vamos pensar se a cosmovisão cristã é capaz de abarcar sua experiência.
Bom, perceba que a Bíblia ensina sobre a existência de seres espirituais chamados ‘anjos’. Ela também ensina que uma parte deles caiu de seu estado de santidade, e agora servem ao líder da rebelião, que é Satanás. Esses anjos caídos são conhecidos como demônios. Perceba que eles são seres espirituais, e, portanto, não espaciais (o que não significa que são onipresentes) e invisíveis. Sob essa perspectiva, nada me impede de pensar no ente que lhe apareceu como um desses...
JOÃO: Mas isso é um absurdo! Demônios, segundo a concepção cristã, são criaturas terríveis. A que me apareceu era doce, delicada. Era minha mãe! Não era um espírito ruim. Me ensinou coisas boas, e me levou à prática da caridade. Como pode uma criatura dessas ser do mal?!
PASTOR: Acalme-se, João. A questão é que você parece estar interpretando o cristianismo segundo a teologia popular. Não há registros na Bíblia de que os demônios sejam parecido com monstros. Na verdade, seres espirituais não têm forma. Quando aparecem em uma, não passa de um modo de representação. Quanto a ser um ser de aparência boa, não há problemas. A Bíblia fala que Satanás se transforma até mesmo em anjo de luz! (2 Coríntios 11:14). E, em outra parte, Paulo, inspirado por Deus, afirma tacitamente que um anjo poderia vir com uma mensagem diferente da do Evangelho, e que, portanto, era maldito (Gálatas 1:8-9).  Portanto, não é a aparência que vai ditar sua natureza.
Agora, quanto ao teor benéfico dos ensinos que este espírito lhe instruiu, temos que fazer uma revisão. Primeiro, revisemos o que você entende por coisas boas. Partindo do pressuposto de que o objetivo de Satanás e suas hostes seja ‘roubar, matar e destruir’ (João 10:10), e de que isso  não poderia ser melhor concretizado fazendo outra coisa senão afastar o homem de Deus. Uma vez que o espiritismo confronta os ensinos da Palavra de Deus, ele leva, necessariamente, ao admiti-lo, à morte...
JOÃO: Então é errado praticar caridade?! Os espíritos nos instruem à prática do bem. Fazer o bem ao próximo, isso não e amor? Quem faz o bem não é de Deus?
PASTOR:  Novamente, recorro às Escrituras. Quero salientar que a moralidade não se restringe a ações para com os homens e demais criaturas. Ela se estende a Deus. Praticar cultos que ele abomina é completamente imoral. Percebemos isso ao notar que o primeiro e grande mandamento é amá-lo com todas as nossas faculdades mentais (Mateus 22:37). Amar o próximo é o segundo mandamento.
Respondendo à sua última questão, precisamos entender as motivações do coração. Primeiro, o que é o amor? Amor é sinônimo (ou inclui, as opiniões divergem) de altruísmo. A Bíblia fala que Deus prova seu amor, ou o evidencia, ao mandar Jesus (1 João 4:9, e.g.). Deus é auto-suficiente. Enviar Jesus foi algo sublime, que extrapola nosso entendimento. É o ato mais altruísta que se possa imaginar, um ser divino, auto-existente e auto-suficiente se colocar suscetível à dor e à morte por conta de criaturas rebeldes que o odeiam! E a teologia joanina prossegue dizendo que os únicos que conseguem praticar o amor semelhante a Deus são os cristãos. Perceba que a ética está não só na ação, como nas motivações. Paulo, em 1 Coríntios 13, versículo 3, diz que é possível distribuir todas as nossas posses, e até sermos queimados vivos sem que isso consista em uma atitude de amor! Agora, se não me engano, na caridade espírita não há nada de altruísta. A caridade que vocês fazem não seria uma forma de auto-ajuda, de auto-promoção? Com essa motivação, podem até dar tudo o que tem, como diria Paulo, nada disso tem proveito.
JOÃO: Tudo bem, pastor. O senhor acha, então, que o espírito que eu vi naquele dia não era minha, mãe; antes, era um demônio disfarçado, com a figura de minha mãe, buscando me levar para longe de Deus. Ele, como ser espiritual, poderia ter estado ali conosco enquanto minha mãe me segredava aquilo. Não é isso?
PASTOR: Exatamente. Essa seria a conclusão de minha argumentação.
JOÃO: Mas isso tudo é segundo a perspectiva da sua teologia. Estou de saída, pastor. Ainda não ficou provado que a Bíblia ensina algo diferente do que ensina o espiritismo...  uma hora a gente conversa sobre isso.
PASTOR: Ok. Fica para outra hora...

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